Troco o cartão da Porto Seguro por um Bilhete Único com créditos

Se alguém disser por aí que vendi meu carro porque nunca aprendi a fazer baliza eu nego até a morte. Nego que tenha vendido por esse motivo. Mas confirmo que nunca realizei uma baliza com primazia nesses dez anos motorizada. Nunca mesmo. Em todas que consegui chegar até o fim foram atos que me fizeram suar - independente da temperatura externa - e soltar alguns palavrões e pensar em maneiras de como criar um mecanismo que fizesse o carro se encaixar sozinho na vaga, de cima para baixo. Como um bloco de concreto ou uma peça de lego. Sei lá. Algo prático e fácil. Como deveria ser tudo na vida. Não falo isso com orgulho. Mas também não é nenhuma grande tragédia, convenhamos. É só uma baliza. É não. Era. Desde que vendi meu carro, há um ano, me livrei desse peso, desse carma, desse grande exercício físico e emocional que é o ato de realizar uma baliza. Multiplique por quatro o sofrimento quando o bar inteiro interrompe seus chopes e porções de batatas-fritas com ketchup para simplesmente te observar e fazer um bolão de que "certeza que ela vai subir na calçada, quer apostar?"

Já são 365 dias sem carro. Trezentos e sessenta e cinco dias que ele se foi para nunca mais voltar. Nunca diga nunca. Tá bom. Vou reformular a frase. Trezentos e sessenta e cinco dias que ele se foi. Ponto. Eu até gostava dele, mas nada de mais. No fundo, no fundo a gente só se dava bem porque ele era adaptado para transportar a minha bicicleta. E só. Tanto que em trezentos e sessenta e cinco dias sem ele só senti saudades uma vez, que foi ao ir para Bauru passar o Natal. Se ele ainda estivesse comigo a bicicleta teria ido junto. No lugar da magrela, levei tênis de corrida. Tudo bem também.

Vendi o carro porque a gente nem se encontrava mais. Eram 30 dias de ausência. Não há relacionamento que suporte toda essa distância, descaso e omissão. Às vezes descia até a garagem só para ver se ele ainda estava lá e fazer um carinho. Mas já não era mais a mesma coisa desde quando nos conhecemos. Havia chegado a hora de dizermos adeus um ao outro e ficarmos apenas com as boas lembranças. As más lembranças, como o dia em que o vidro elétrico travou na chuva, ou aquela vez que o motor pifou durante as férias, ou naquela noite em que o som foi levado pelos bandidos - esses ordinários que nos assombram diariamente - ou aquele sábado em que o pneu furou na estrada solitária, tudo isso já foi perdoado, mas devidamente computado na hora de assinarmos o nosso divórcio. Não vou nem falar sobre o IPVA, o seguro e a inspeção veicular. E também não vou escrever sobre as multas e preços exorbitantes dos estacionamentos.

Hoje ele foi devidamente esquecido por mim e espero que esteja fazendo bem a alguém, como me fez por um tempo breve. Troquei o cartão da Porto Seguro pelo cartão Fidelidade do Metrô e pelo Bilhete Único. Troquei o som do carro por um iPod repleto com músicas de rock e soul. Tem um Bob Marley também para os dias mais difíceis. Troquei a chave do carro pelos aplicativos de táxi. Isso sim é a grande invenção da humanidade. Aproveito aqui o momento para agradecer aos desenvolvedores desses aplicativos. Obrigada, vocês melhoraram muito a minha vida. Também tenho, como garantia, uma lista de taxistas amigos que podem levar minha bicicleta para lugares aonde não consigo chegar pedalando. Troquei os sapatos duros, que me causavam bolhas no calcanhar, por alguns modelos mais confortáveis e nem tão bonitos assim. Desculpem mulheres de salto de plantão, mas na vida é preciso optar entre a beleza e o conforto. Fiquei com a segunda opção.

Antes de continuar o texto reforço o que digo sempre: não quero impor meu modo de vida a ninguém, mesmo porque eu moro do lado do metrô e da Avenida Paulista, o que me permite o acesso fácil aos transportes públicos, que não, não são de qualidade. Além do mais, moro perto do meu trabalho. Portanto, a decisão de vender o carro foi tomada pensando em todas essas facilidades. Mas também preciso dizer que nunca fui apegada a automóveis. Desde que me mudei para São Paulo meus finais de semana já eram preenchidos com metrô, táxi e pernadas. As saídas à noite também. Afinal, nunca quis me preocupar com Lei Seca e sempre tive muito medo de causar um acidente e ferrar a minha vida de uma vez por todas. Preferia ir de passageira num táxi qualquer ao invés de abdicar da cerveja. Quando eu tinha 18 anos quase atropelei um motoqueiro ao sair de uma boate. Eu tinha bebido. Depois disso, nunca mais bebi e dirigi.

Não vejo carro como status. Acho apenas um meio necessário de locomoção. Mas parece que a regra hoje é mais ou menos assim: quem nunca teve, quer ter - o que é justo. Quem tem um pequeno, quer um grande e quem tem um grande quer ter dois grandes - que não sei se é justo. E também não tenho nada com isso.

E, tem mais. Tenho achado as pessoas meio loucas ao dirigir em São Paulo. Insanas mesmo. Nem parece que aquele cara dirigindo de maneira alucinada e buzinando para a velhinha de bengala sair da frente é aquele pai doce e carinhoso com os filhos. Tenho medo de ficar assim. Mais louca. E mais insana. Porque já tenho um pouco - ou muito - dessas duas características.

Taxistas se tornaram meus melhores amigos. Vocês não sabem como pode ser divertido uma boa conversa com esses motoristas. Eles têm maravilhosas histórias para contar. Também preciso dizer que me sinto ótima sempre desembarcando na porta dos estabelecimentos. Quando você é uma motorista que não sabe fazer baliza, tem o costume de parar na primeira vaga fácil que encontra e isso pode estar há quilômetros do seu destino final. Uma vez caminhei por 12 quarteirões. Não lembro quando foi a última vez que dirigi um carro. Se dirigir for como andar de bicicleta talvez eu ainda consiga. Se não for, avisem logo, pois posso ter me tornado um perigo no trânsito.

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Jornalista. Ardida. Gosta de livros, música, Mafalda, São Jorge, sorvete, corrida e bicicleta. Canta sozinha na rua e conta helicópteros no céu.

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