Quando a morte bate na porta ao lado

Eu só descobri o nome dela um mês antes de ela morrer. Moramos dois anos no mesmo andar e o fato de eu não saber como se chamava a minha vizinha sempre me incomodou, como eu já contei por aqui em texto anterior. Isso mudou em um sábado à tarde quando, ao precisarem de ajuda, fui acionada. A minha vizinha estava escorregando da cadeira de rodas e precisavam de auxílio para posicioná-la corretamente. Nunca tinha feito isso antes e tentei a puxar pelos braços. Ela pediu para eu parar, pois sentia uma forte dor nos ombros. Culpa de não exercitar o braço direito na fisioterapia, foi o que ela me disse. Estava tomando remédios para o alívio da dor, mas não estava adiantando muito.


Nesse dia entrei em casa satisfeita por ter, enfim, aprendido o nome dela. Não era Cida como eu desconfiava desde que mudei para aquele apartamento. Agora, eu não esqueceria mais. E poderia cumprimentá-la devidamente no elevador sem ter que disfarçar a chamando apenas de “vizinha”. Agora “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “chove né?”, “mas que calorão”, “como vai a família?” e “voltou a frente fria” seriam diálogos devidamente acompanhados pelo nome dela.

Desde aquele sábado não a encontrei mais, nem no prédio, nem comendo esfiha no árabe da esquina e nem em alta velocidade pela Avenida Paulista com a sua cadeira motorizada. Mas, também, não nos víamos com tanta frequência.

Ontem, ao chegar em casa, um aviso no elevador dava o recado: “É com pesar que comunicamos a morte, na manhã de hoje, da moradora Mari.” Mari, era ela, a minha vizinha. Eu tinha decorado o nome dela.

Desci para falar com o porteiro para saber o que tinha acontecido com a Mari. Câncer nos ossos com metástase pelo corpo. Ela estava sentindo umas dores fortes no ombro, me contou o porteiro, até que precisou ser internada, há mais ou menos três semanas.  Ah, as dores no ombro, pensei. Àquelas que ela confundiu com a falta de exercícios na fisioterapia. Sim, ela confundiu. Só soube do câncer quando não havia mais nenhuma chance de tratamento. Também descobri ontem que Mari ficou paralítica há doze anos, de repente. Um dia acordou e não conseguiu se levantar da cama. Estava paralítica. Aos 50 anos precisou se reinventar.


Não éramos amigas, mas eu gostava do movimento que ela causava no andar, com o entra e sai do irmão esquisito, a cuidadora que colocava o lixo para fora todos os dias às 9h20 – assim como eu – e puxava assunto sobre a vida, a morte e o tempo que passamos trabalhando. Nunca trocamos uma xícara de açúcar ou farinha e eu só decorei o nome dela um mês antes de ela morrer. E nem deu tempo de falar “Bom dia, Mari. Frio hoje né?”

Como conheci Marcela


Como conheci Marcela: Ela caminhava na esteira da Linha Amarela com pressa. Carregava livros, cadernos e, em cada ombro, uma bolsa estava pendurada. Sem contar o guarda-chuva, que pingava, e ela o ajustou entre o braço e o corpo e tentava desviar da água que escorria dele para não molhar o sapato. Mas molhou. Quando a vi saindo do metrô pensei que ela poderia ser eu, pois eu com frequência andava cheia de coisas e sempre me arrependia de ser assim quando eu precisava entrar no trem, no ônibus ou simplesmente dar uma caminhada mais longa.

Enquanto Marcela passava pela esteira para fazer a baldeação com a Linha Verde eu fazia a mesma coisa, mas eu estava atrás dela e a observando. Foi quando uma pessoa com mais pressa que Marcela esbarrou nela e todas as coisas de Marcela caíram no chão. Marcela se desequilibrou e também caiu.
Ela se levantou rápido, meio com vergonha, meio com raiva. Quando você já caiu em público fica fácil identificar o sentimento da Marcela e sabe do que estou falando sobre se levantar rápido e querer sair daquele lugar correndo, mesmo que esteja toda machucada. Eu pelo menos sei bem o que é isso. Aparentemente Marcela não estava machucada, só mesmo com vergonha. E com raiva. Loira, ficou vermelha como uma pimenta. 

Marcela não precisou da minha ajuda para se levantar, mas precisou da minha ajuda para recolher as coisas dela que caíram e se espalharam. Só não deu para salvar o batom, pois outra pessoa, que também estava com pressa, pisou nele sem nem notar Marcela. 

Marcela arrumou os livros novamente, pendurou as duas bolsas - uma em cada ombro - ajustou o guarda-chuva, me agradeceu e disse que já estava acostumada: Não era a primeira vez que ela caía em público. "Qual o seu nome?, perguntou. "Maria Fernanda e o seu?" "Marcela". "Prazer Marcela. Boa sorte aí até chegar em casa." 

Nos despedimos e cada uma tomou o seu rumo. Cheguei a pensar que a Marcela, na verdade, poderia se chamar Maria Fernanda. Ou eu poderia me chamar Marcela. 

As pegadinhas do amor

Poderia ter sido um dia como outro qualquer, mas não foi. Aqui o que menos importa é se chovia ou se fazia sol. Se era Verão ou Inverno. Noite ou dia. Escritório ou praça pública. Quente ou frio. Praia ou campo. Brisa ou ventania. O único fator importante daquele dia de abril é que foi quando ela o conheceu. Parece mais uma história boba de amor à primeira vista. Mas que história de amor à primeira vista não é tola? Imaginem se as histórias de amor fossem complexas como calcular logaritmos? Que chatice seria o amor. 

Voltando. Ela tinha certeza que ele tinha sido feito pra ela. Sabe aquele clichê de “é o meu número?” Então, mais ou menos isso.  Moreno, barba por fazer, altura no limite (isso significa que ela poderia usar seus saltos favoritos sem ultrapassá-lo), voz grossa e máscula, poliglota, mais de trinta anos e menos de quarenta, um cabelinho meio rebelde e um jeito relapso de usar a camisa com dois botões abertos e uma parte que saía para fora da calça, como quem quer parecer desarrumado de propósito. Ela tinha certeza que ele era o genro que toda mãe queria. Não, não estava pensando em casamento. Não já. Mas um dia, quem sabe. Ela casaria com ele. Ah, casaria.

Depois desses cinco minutos em que foram apresentados e em que o seu coração pulsou como nunca, um anel na mão esquerda brilhou quando ele foi dizer tchau. Ele era casado. Puta que o pariu. Ele era casado. Ca-sa-do. Óbvio que ele era casado. Nada com ela poderia ser tão fácil. Algumas amigas ainda a aconselharam a investir mesmo assim. Vai que ele nem estivesse tão bem assim com a mulher. Mas ela não queria saber dessa conversa não. Se ele era casado, ela estava fora. E decidiu que assim seria. Evitou todos os olhares no café, na máquina de refrigerante, no elevador. Não riu das piadas dele durante o almoço, não aceitou os convites para tomar um ar lá no jardim de Inverno, nem para uma água com gás com gelo e limão. Sofreu, chorou, foi para a terapia, para a cartomante, para o pai de santo. Xingou. Blasfemou. Maldita aliança que não parava de reluzir e não lhe saía do pensamento.

Meses se passaram. Ela arrumou outro. Nada como uma nova paixão para curar a antiga. E esse é mais um clichê, mas quem liga pra isso? Estava descontraída, feliz com o novo namorado. Então, aceitou o convite para o café. Enquanto conversavam sobre o novo presidente da empresa - aquele pedante, grosseiro e machista -, ela teve tempo para fixar os olhos na aliança dele sem compromisso. Sem pressa. Afinal, já tinha até esquecido que ele tinha nascido para, quem sabe um dia, ser seu futuro marido. Olhou, olhou, olhou. Reparou bem. Muito bem. Não era possível. Não, não, não. Não é possível. Olhou de novo. Sim, era isso mesmo. Encarou a realidade. Aquilo não era uma aliança. Era um terço em forma de anel. Além de tudo, religioso. 

Maldito Facebook

Ela me contou a sua história de amor e pediu para que eu a escrevesse. A história poderia ter sido escrita por ela mesmo, de tão linda que é, mas ela não queria que soubessem de quem se trata. Então, ficou assim:

De óculos escuros, cabelos presos, e uma roupa qualquer, ainda olhando para a área de embarque enquanto ele se ia, ela chorou. Chorou de soluçar. Chorou de perder as forças, chorou até faltar o ar. Chorou de fazer barulho. Chorou de doer. De doer a alma. Chorou sozinha. E foi embora sozinha. Ele não voltaria mais. Ela sabia. Pelo menos não mais para a vida dela. Mas para preencher a vida de alguém ele estava voltando.

Conheceram-se durante um trabalho esporádico, daqueles intensos, que te deixam sem casa e sem vida por alguns meses. Mas que vale a grana paga. Ela na cidade dela e ele fora da cidade dele.  Foi amor ao primeiro telefonema. Ficaram um mês se apaixonando um pelo outro somente pela voz. E quando não tinham motivos para se falarem por telefone, arrumavam um. Ambos sabiam que aquela ligação era somente uma desculpa para se ouvirem. Ela gostava da voz dele. Ele achava ela engraçada. Parecia que se conheciam há anos. Quase que de outra vida. Sim, chegaram a suspeitar que era coisa de reencarnação.

Viram-se pessoalmente. Meu Deus, ele não era só aquela voz bonita do telefone. Deu choque já nos primeiros segundos do encontro. Mas era um encontro de trabalho e não amoroso. Contiveram-se. Ela fala que ouvia barulhinho de alta tensão só de relar nele, tamanho era o choque. Ela descobriu que ele namorava. Ficou decepcionada. Ficou brava. Ficou triste. Ficou com raiva da vida. Decidiu que iria resistir ao amor. Ele concordou. Mas ninguém resistiu a nada. O cupido havia acertado a flecha. Não era só a conhecida química explosiva – pele e cheiro – mas também tinha cumplicidade na troca de olhar, no sorriso, nas conversas, nos abraços e nos carinhos. Era sexo, sim. Mas também era coração.

Foram dois meses assim e ambos achavam que, enfim, a vida seria generosa com eles. Tinham tudo, mas faltava o amor. E o amor estava ali agora. O trabalho temporário acabou. Corações ficaram aflitos. Ele precisava voltar para a cidade dele. Para o Estado dele. Para a namorada dele. E ele voltou. E foi ela quem o levou até o aeroporto. Depois da despedida, chorou mais dois dias na cama. Sem sair se quer para comer. Mas decidiu que era hora de levantar – da cama e para a vida – e assumir os riscos que saberia que iria enfrentar quando disse sim a ele.

A vida tomou o seu rumo e ela continuou a buscar um amor. Nunca mais se falaram. Dia desses resolveu matar a saudade vendo fotos dele no Facebook. Descobriu que ele e a namorada haviam se casado. Ficou em choque. Mais um dia chorando na cama. Não tem muita certeza, mas acha que ele era o homem da vida dela. Pelo menos até hoje. Maldito Facebook. 

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Jornalista. Ardida. Gosta de livros, música, Mafalda, São Jorge, sorvete, corrida e bicicleta. Canta sozinha na rua e conta helicópteros no céu.

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