Talvez nem sejam eles


Eu queria ter começado esse texto informando que no meu prédio tem 48 apartamentos. Teria sido simples ter chegado a esse número se eu ao menos soubesse quantos andares tem o prédio em que moro há um ano e nove meses. Portanto, antes de começar a escrever, fui até o elevador e contei quantos andares tem o prédio em que moro há exatos um ano e nove meses. São dozes pisos. Multiplicado por quatro unidades por andar, são 48 moradias. Refiz as contas várias vezes para não errar o cálculo e o assunto desse texto ir para o viés óbvio de que jornalistas não sabem fazer contas.

Hoje, ao chegar do trabalho e entrar no elevador do prédio que moro há exatos um ano e nove meses, mais um aviso com escritos prontos, daqueles em que só trocam o nome, lamentava a morte do senhor José de Vito, do apartamento 81. Trocam o nome e o número do apartamento. Para escrever aqui o nome completo do José de Vito, precisei voltar novamente ao elevador para checar a informação porque não consegui decorar quando fui da primeira vez para contar os andares.

Do térreo até o quinto piso, ocupado apenas por mim e mais um moradora que devo ter visto o rosto duas vezes e não ouso nem chutar o nome porque não saberia nem por onde começar, são apenas alguns segundos. Entrei em casa e mais alguns segundos até colocar o nuggets no forno. Nuggets esse que torrou enquanto eu escrevia esse texto. Mas o tema aqui também não são os nuggets. Queimados ou não. O assunto é o fato de mais uma pessoa do meu prédio ter morrido. Mais uma pessoa que eu não faço ideia de quem seja.

Desde que estou aqui, há exatos um ano e nove meses - eu já falei isso? -, o José deve ser a quinta. José de Vito. É esse o nome dele. Das cinco, eu só lembrava de uma, que era a minha vizinha da frente. Pelo sobrenome, DE VITO, fico pensando que pode ser um senhor simpático que eu trombo no elevador de vez em quando passeando com um cachorro de pequeno porte, de uma raça rara, segundo ele mesmo me contou, e cujo cachorro sempre rosna quando tento passar a mão no rabo peludinho dele. Mas, talvez, eu esteja confundindo esse senhor com um outro que tem dois cachorros e que também sempre trombo no elevador. O primeiro dos dois sempre puxa papo comigo quando entro suada voltando de alguma corrida. Na conversa, os bons tempos de quando ele corria maratonas inteiras e sentia os ossos praticamente em frangalhos quando completava os 42 quilômetros. E ele sempre completava. Pelo menos foi o que ele me contou.

Mas, talvez quem me diga isso não seja o senhor do cachorro com raça esquisita e sim o dono dos dois cães viralatas. Eles não são parecidos. Os donos não são. Mas acho que os cachorros são e me confundem. Ou talvez o que me confunde seja o fato de estarmos ambientados sempre no mesmo local. Ou ainda o fato de eu estar sempre pensando em alguma outra coisa. Já disse que não tenho foco? Talvez, nem mesmo seja nenhum desses dois que tenha falecido na madrugada de ontem.

Interfonei para o síndico para tentar desvendar algo. Em vão. O porteiro também não soube me informar nada. Ele é novo aqui. Vivem trocando de porteiro. Acho chato isso porque fica cada vez mais difícil de eu decorar o nome deles. Talvez amanhã, quando eu sair para trabalhar, consiga falar com o Fernando, o síndico, para tentar descobrir quem foi e o que aconteceu. Talvez nesse meio tempo eu trombe com um dos dois no elevador e já descarte alguma possibilidade. Talvez eu encontre com os dois e volte à estaca zero sobre minhas tentativas de acerto e erro. Talvez eu nunca descubra quem tenha sido José de Vito, morador do 81. Talvez, mesmo nesses exatos um ano e nove meses, eu nunca tenha trombado com ele no elevador. Talvez tivéssemos horários diferentes. Talvez ele nem tenha cachorro. Talvez nem seja senhor. Talvez esse seja só mais um caso de um completo desconhecido que mora no mesmo lugar que você há exatos um ano e nove meses. Um desconhecido que faleceu na madrugada de ontem.

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