Não que eu esteja mentindo. Não é isso.

Não que eu repare na roupa dos outros, mas até hoje não entendi porque ela sempre chega à academia com o jaleco que usou para trabalhar a madrugada toda. Não que eu faça pré-julgamentos, mas aquele jaleco só pode ter sido usado durante a madrugada num hospital qualquer. Não que eu repare nas outras mulheres, mas não sei qual o motivo de ela usar aquela sombra cor de rosa neon seja dia ou seja noite. Não que eu considere estranho, mas não sei por que ela chama o cachorro de filho ou o filho de príncipe. Não que eu tenha algo contra, mas não entendo como alguém pode gostar de pagode, rap ou sertanejo. Não que eu tente impor meus gostos, mas por que não ouvir jazz, rock ou blues? Não que eu seja contra a diversidade, mas não entendo como ele pode ter virado gay sendo tão bonito e com tanta mulher disponível no mercado. Não que eu prefira plantas às crianças, mas é que elas dão bem menos trabalho e ainda te recompensam com flores.  Não que eu ache que as pessoas precisam se vestir do mesmo jeito, mas não entendo quem usa conjunto de oncinha. Não que eu não respeite os que comem carne, mas acho que todos deveriam ser vegetarianos. Não que eu não respeite todas as crenças, mas na minha opinião todo mundo deveria acreditar na vida após a morte. Não que eu esteja preocupada com isso, mas ela está uns bons quilos acima do peso. Não que não faça parte, mas você reparou como ela envelheceu? Não que eu acredite nisso, mas certeza que aquele câncer é psicossomático, de tanto estresse que ele passa na vida, não concorda? Não que eu não goste, mas acho estranho homem com gel no cabelo. Não que eu não esteja aberta a novas experiências, mas não frequento festas com gente que eu não conheço. Não que eu seja neurótica, mas sempre acho que posso ser atropelada por um ônibus. Não que eu seja apegada a dinheiro, mas ela tinha razão de ter brigado pela herança. Não que eu não goste, mas acho cafona prédio com cascatas. Não que eu queira impor minhas ideias, não é isso, mas não consigo ter paciência com gente que acha normal jogar latinha na rua para dar emprego para o gari. Não que eu me intrometa em brigas de marido e mulher, mas ela bem que mereceu a separação. Não que eu seja a favor da violência, mas ninguém mandou ele provocar. Não que eu não esteja feliz, mas o que me falta é dinheiro. Não que eu me intrometa na vida alheia, mas o problema dele são os filhos. Não que eu seja contra o aborto, mas quem mandou não usar camisinha? Não que eu esteja sendo dissimulada, não é isso. E nem mentindo. Não é isso.  

Posso falar? Eu só queria dizer que sou contra

Eu só queria saber se eu também tenho direito à palavra. Não é porque sou só uma locatária que eu não posso opinar em relação às mudanças que acontecem no prédio. Eu tendo ou não direito a voto, vocês terão que me ouvir. Eu preciso falar. Preciso. Sério. Porque mesmo eu sendo só uma locatária preciso dizer que é um verdadeiro absurdo vocês terem montado a árvore de Natal na frente do espelho da recepção. Ainda falta um mês e meio para o Natal e daria muito bem para esperar mais um pouco. Mas, se fazem questão de montar a árvore mesmo faltando um mês e meio para o Natal, tudo bem, mas não precisava instalar a árvore de Natal bem na frente do espelho da recepção.
Aposto que foi um homem quem teve a brilhante ideia de instalar a árvore de Natal mesmo faltando um mês e meio para as festas na frente do espelho. Mulher nenhuma faria isso. Nem mesmo aquelas que levam uma vida franciscana. Nem mesmo as hippies. Nem mesmo as que não se preocupam com o cabelo. Nem mesmo as que não usam maquiagem. Nem mesmo as que não usam salto, nem mesmo as lindas, nem mesmo as feias, nem mesmo as que só usam chinelo, nem mesmo a monja Coehn.  Não que eu seja contra árvore de Natal. Não é isso. Na verdade, é isso. Também isso. Mas sou ainda mais contra quando elas são montadas faltando tanto tempo para chegada do Papai Noel. Céus, eu disse Papai Noel? Sim, eu disse. Disse não. Escrevi. Eu prefiro o espelho à árvore de Natal. Se as árvores de Natal só são desmontadas dia 6 de janeiro, isso significa que terei dias difíceis até lá. Não me interrompe, por favor, porque estou falando. Como assim não posso dar palpite só porque sou locatária? Eu só queria dizer que há muitos outros lugares no prédio para instalar essa árvore de Natal gigante. E se a gente empurrasse um pouco mais para a direita? Ou para a esquerda? E se colocássemos lá ao lado da guarita? E se colocássemos no estacionamento? No salão de festas? No jardim de inverno? Ao lado da fonte? Ah, já sei, e se não montássemos a árvore? Gosto de ideia de não montarmos a árvore. De fingirmos que não está acontecendo nada. Entre um espelho de dois metros por um metro e meio e uma árvore de Natal fico com o espelho. E posso estar sendo prepotente, mas acredito que eu esteja fazendo tal reivindicação no nome de todas as mulheres desse prédio.
Além do mais, a própria CNBB orienta que as árvores só sejam montadas a partir de 30 de novembro. Vocês não respeitam nem a liturgia. Gente ansiosa, credo. Sabia que vocês estão estimulando o consumo desenfreado lembrando as pessoas que já é Natal? É, as crianças olham para árvore e já começam a grudar na barra da calça dos seus pais com pedidos descabidos. Dia desses vi uma que pediu aquele vídeo game de R$ 4 mil. Isso é o tipo de assunto que deveria ser decidido em assembleia. Ah, foi decidido em assembleia? Eu não fui convidada por que sou locatária? Aposto que essa reunião estava composta apenas por membros do sexo masculino. Esse gênero não entende nada de mulher, quanto menos de espelho. Tudo bem que eu sou apenas uma locatária, mas vocês já pararam para pensar quantas mulheres desamparadas, assim como eu, habitam o mesmo prédio uma hora dessas? Já pararam para pensar quantas mulheres se aventurando pelo mundo com seus batons borrados, seus sapatos trocados, suas blusas do avesso, seus penteados despenteados, seus cintos fora do lugar? Uma vida toda de dedicação jogada no lixo. No lixo. Era só isso o que eu queria dizer. Obrigada e boa noite. 

Talvez nem sejam eles


Eu queria ter começado esse texto informando que no meu prédio tem 48 apartamentos. Teria sido simples ter chegado a esse número se eu ao menos soubesse quantos andares tem o prédio em que moro há um ano e nove meses. Portanto, antes de começar a escrever, fui até o elevador e contei quantos andares tem o prédio em que moro há exatos um ano e nove meses. São dozes pisos. Multiplicado por quatro unidades por andar, são 48 moradias. Refiz as contas várias vezes para não errar o cálculo e o assunto desse texto ir para o viés óbvio de que jornalistas não sabem fazer contas.

Hoje, ao chegar do trabalho e entrar no elevador do prédio que moro há exatos um ano e nove meses, mais um aviso com escritos prontos, daqueles em que só trocam o nome, lamentava a morte do senhor José de Vito, do apartamento 81. Trocam o nome e o número do apartamento. Para escrever aqui o nome completo do José de Vito, precisei voltar novamente ao elevador para checar a informação porque não consegui decorar quando fui da primeira vez para contar os andares.

Do térreo até o quinto piso, ocupado apenas por mim e mais um moradora que devo ter visto o rosto duas vezes e não ouso nem chutar o nome porque não saberia nem por onde começar, são apenas alguns segundos. Entrei em casa e mais alguns segundos até colocar o nuggets no forno. Nuggets esse que torrou enquanto eu escrevia esse texto. Mas o tema aqui também não são os nuggets. Queimados ou não. O assunto é o fato de mais uma pessoa do meu prédio ter morrido. Mais uma pessoa que eu não faço ideia de quem seja.

Desde que estou aqui, há exatos um ano e nove meses - eu já falei isso? -, o José deve ser a quinta. José de Vito. É esse o nome dele. Das cinco, eu só lembrava de uma, que era a minha vizinha da frente. Pelo sobrenome, DE VITO, fico pensando que pode ser um senhor simpático que eu trombo no elevador de vez em quando passeando com um cachorro de pequeno porte, de uma raça rara, segundo ele mesmo me contou, e cujo cachorro sempre rosna quando tento passar a mão no rabo peludinho dele. Mas, talvez, eu esteja confundindo esse senhor com um outro que tem dois cachorros e que também sempre trombo no elevador. O primeiro dos dois sempre puxa papo comigo quando entro suada voltando de alguma corrida. Na conversa, os bons tempos de quando ele corria maratonas inteiras e sentia os ossos praticamente em frangalhos quando completava os 42 quilômetros. E ele sempre completava. Pelo menos foi o que ele me contou.

Mas, talvez quem me diga isso não seja o senhor do cachorro com raça esquisita e sim o dono dos dois cães viralatas. Eles não são parecidos. Os donos não são. Mas acho que os cachorros são e me confundem. Ou talvez o que me confunde seja o fato de estarmos ambientados sempre no mesmo local. Ou ainda o fato de eu estar sempre pensando em alguma outra coisa. Já disse que não tenho foco? Talvez, nem mesmo seja nenhum desses dois que tenha falecido na madrugada de ontem.

Interfonei para o síndico para tentar desvendar algo. Em vão. O porteiro também não soube me informar nada. Ele é novo aqui. Vivem trocando de porteiro. Acho chato isso porque fica cada vez mais difícil de eu decorar o nome deles. Talvez amanhã, quando eu sair para trabalhar, consiga falar com o Fernando, o síndico, para tentar descobrir quem foi e o que aconteceu. Talvez nesse meio tempo eu trombe com um dos dois no elevador e já descarte alguma possibilidade. Talvez eu encontre com os dois e volte à estaca zero sobre minhas tentativas de acerto e erro. Talvez eu nunca descubra quem tenha sido José de Vito, morador do 81. Talvez, mesmo nesses exatos um ano e nove meses, eu nunca tenha trombado com ele no elevador. Talvez tivéssemos horários diferentes. Talvez ele nem tenha cachorro. Talvez nem seja senhor. Talvez esse seja só mais um caso de um completo desconhecido que mora no mesmo lugar que você há exatos um ano e nove meses. Um desconhecido que faleceu na madrugada de ontem.

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Jornalista. Ardida. Gosta de livros, música, Mafalda, São Jorge, sorvete, corrida e bicicleta. Canta sozinha na rua e conta helicópteros no céu.

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